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sexta-feira, 1 de março de 2013

Casos de direito galáctico. O mundo inquietante de Josela ( Fragmentos) Mário-Henrique Leiria, 1ª edição 1975

Casos de direito galáctico.O mundo inquietante de Josela (fragmentos)
Mário-Henrique Leiria
Editorial República
Coleção Letras
1ª edição
1975
Ilustrações de Cruzeiro Seixas











 Ilustração de Cruzeiro Seixas para a capa do livro «Casos de Direito Galático».

CASO 37 007 339 – 3º VIII
Sector de Rigel
(Crostol contra Pul-Tra)
Pul-Tra, rastejador polipoide de Algol-7, caixeiro viajante de máquinas de solidão, ao desembarcar no porto estelar de Troikalan em actividade profissional, foi abordado no bar do dito astroporto por Crostol, indivíduo insecto-voador, indígena do planeta, que delicadamente o convidou a tomar um recipiente de «Grum-Kvas VOP» como símbolo de boas vindas.
Pul-Tra, com dois tentáculos e extremo cuidado, pegou no insecto indígena e, em gesto ritual, arrancou-lhe cerimoniosamente os órgãos visuais.
Dado este acontecimento, foi detido para averiguações por um membro do Departamento Gravito-Sentencioso que gravitava de serviço no astroporto.
A queixa foi imediatamente apresentada por Brastol, membro do grupo reprodutivo de Crostol (5º sexo), baseada na alegação de destruição desnecessária praticada na pessoa de um indivíduo do citado grupo.
Processando-se em seguida a análise de Conjuntos, Circunstâncias e Condições, alegou a defesa que Pul-Tra, como todos os naturais de Algol-7, era de condição pacífica, sempre pronto a retribuir qualquer delicadeza recebida.
Dado que, por contingência psico-somática, todos os naturais dessa região prezam e consideram como o maior bem a solidão e a contemplação interna (zan-zan-dag), Pul-Tra, ele mesmo vendedor das mais requintadas máquinas de solidão produzidas pela sua raça, devolvera no melhor estilo a amabilidade de Crostol, libertando-o dos órgãos visuais e, assim, da presença de imagens externas inoportunas.
A acusação (Ministério Público – Comarca de Troikalan) no entanto, não aceitou esta argumentação, considerando que, como é sabido, os órgãos visuais dos indígenas de Troikalan são o elemento sustentador do equilíbrio sexual (5º sexo) dos grupos reprodutivos e a destruição desnecessária dos mesmos pode pôr em grave risco a imprescindível polinização das fecundações de grupo. A ignorância deste facto, disse, não pode de forma alguma servir como argumento para a absolvição do rastejador polipoide Pul-Tra, de Algol-7. Como fez notar, há outras maneiras de ser agradecido além de «andar por aí a vazar olhos» (sic).
A sentença (Sector de Rigel – Comarca de Troikalan) foi benigna, considerando como circunstância atenuante a boa-fé com que o acto fora praticado, embora a acusação tivesse protestado energicamente.
Pul-Tra foi sentenciado a suportar luz nos olhos directa e ininterruptamente durante 37 rotações algolianas (factor + 7), com pena suspensa por 3 ciclos de Rigel. Ao grupo reprodutivo de Crostol foram concedidos dois binóculos reprodutores extra e, como indemnização simbólica, a posse temporária, durante a pena suspensa, do apêndice caudo-solitário de Pul-Tra.
Pergunta-se aos estudantes atentos: foi a sentença coerente com os trâmites planetários em vigor (Sector de Rigel) ou houve abuso de poder?
(Casos de Direito Galático)
Torah
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente. Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro. No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.


Sobre Mário-Henrique Leiria 
(créditos de http://www.vidaslusofonas.pt/index.htm ):


1923: A 2 de Janeiro Mário-Henrique Leiria nasce em Lisboa. - 1942: É expulso, em Lisboa, da Escola Superior de Belas Artes, talvez por motivos políticos. - 1949/51: Participa nas movimentações surrealistas portuguesas, entre as quais a obra colectiva Afixação Proibida. - 1952/57: Vários empregos: Marinha Mercante, caixeiro viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, etc... Viaja pela Europa ocidental e central, também pelo norte de África. - 1958: Visita a Inglaterra. - 1959: Casa, em Lisboa, com uma rapariga alemã; dois anos depois o casal irá separar-se. - 1961: “Operação Papagaio” e MHL é detido pela PIDE. Parte para o Brasil. - 1970: Regressa a  Portugal. - 1973: Publica Contos do Gin-Tonic. - 1974: Publica Novos Contos do Gin. Revolução do 25 de Abril, em Portugal. - 1975: MHL é o chefe de Redacção de O COISO, suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Publica Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças e Casos de Direito Galáctico seguido de O Mundo Inquietante de Josela (fragmentos). - 1976: Adere ao PRP (Partido Revolucionário do Proletariado) - 1979: Publica Lisboa ao voo do pássaro. - 1980: A 9 de Janeiro morre em Cascais (degenerescência óssea).

SURREALISMO E CARBONÁRIA


 
Ó Mário-Henrique: conhecemo-nos em Lisboa, no Café Chiado, em 1951. Tinha eu uns 20 anos e tu eras mais crescidinho, terias uns 28. Lembras-te? Se não te lembras, lembro-me eu, tu sempre agitadinho e a provocar tudo e todos, militância surrealista, as coisas arrancadas do seu lugar habitual, humor negro, a tua rebeldia a oscilar entre as artes plásticas, a prosa e a poesia.
No interior de uma das casas de banho do Café há, na porta, um poema escrito com tinta ácida, impossível de apagar:
Aqui
cagou
Pio XI,
Rei dos Ciganos.
Negas ser o autor mas desmanchas-te a rir e mais me convenço que o poema é teu.
O que tu adoras é choques em cadeia, dentro ou fora das casas de banho... Também te dá muito gozo atropelar os adeptos do “neo-realismo” (nome que, por causa da PIDE e da Censura, em Portugal se dá ao “realismo socialista” apregoado pelo camarada Zdanov). Aproximas-te da mesa do Manuel Ribeiro Pavia e começas a espicaçá-lo por causa das ceifeiras rechonchudas que não pára de esboçar, desenhar e colorir. O Pavia não te suporta, é trombudo por natureza, leva tudo a sério. Guarda os desenhos, fecha a pasta, levanta-se, vira costas, vai-se embora. Não desistes e começas logo a mordiscar o José Dias Coelho, aquele escultor, teu antigo condiscípulo na Escola de Belas Artes, aquele apóstolo comunista que a PIDE irá matar a tiro numa rua do bairro de Alcântara. Mas não consegues varar as suas naturais defesas, ele desmancha-se a rir com as tuas investidas e acaba por te dar um grande abraço. Saudade tens, saudade temos da fraterna inteireza do Zé Dias...
Andas sempre à porrada. Não só com os neo-realistas mas também com os surrealistas, os outros do teu grupo. Não vos entendo, é a briga do Césariny com o António Pedro, e depois tu para um lado e o ALEXANDRE O’NEILL para outro enquanto na primeira sala do Café, sentado a uma mesa, o poeta António Maria Lisboa vai morrendo aos poucos, tuberculose. Apesar de vocês terem feito obras colectivas, como as colagens da Afixação Proibida, os vossos burrinhos estão sempre a puxar cada qual para o seu lado. Porrada, é só porrada... Até que um dia me dizes e passo a entender-te melhor:
- O meu avô é que era um gajo porreiro e muito giro. Pertencia à Carbonária. De segunda a sexta-feira trabalhava mas nos fins de semana fazia a Revolução. Ainda tenho lá em casa o bacamarte que ele usava contra a Monarquia...
Quero ver esse tal de bacamarte e tu convidas-me a ir a tua casa, uma vivenda em Carcavelos, a dois passos de Lisboa, à beira-mar, logo depois da foz do Tejo.
- Mas num domingo à noite, está a ouvir?
- Porquê domingo à noite?
- Tu vais ver...
E vejo. A vivenda onde moras, que foi dos teus pais, que é da tua mãe, fica próximo da estação dos Caminhos de Ferro, mesmo ao lado do cinema. À meia-noite subimos à torrinha e quando os espectadores começam a sair do cinema para a rua, tu empunhas o bacamarte do teu avô e começas aos tiros. Para o ar, mas aos tiros. A malta desata toda a fugir e tu a rir. E eu também, obviamente...
Só agora é que estou realmente a perceber-te: nas horas mais insólitas o teu gene da Carbonária resolve pôr os corninhos ao sol. Até de noite...

"OPERAÇÃO PAPAGAIO"
Mário-Henrique Leiria e mais uns tantos são detidos pela PIDE por causa de uma conspiração “surrealista” contra o Governo. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
 
Em Janeiro de 1954, antes que a PIDE me deite a luva, consigo dar o salto para o Brasil. Nas vésperas ainda tento dar-te um abraço de despedida. Não consigo, estás a viajar pela Europa, irás também ao norte de África, prémio que te concedeste depois de teres trabalhado quer na Marinha Mercante, quer como caixeiro viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, e não sei que mais...
Já no Brasil saberei que em 1958 arregaçaste as mangas durante a campanha do Humberto Delgado à Presidência da República. E que em 1961 também estavas disposto a arregaçá-las quando da falhada revolta de Beja. Saberei ainda que te apaixonastes pela Dietlinde Hartel, a Fipsy, uma alemã, linda mulher. Com ela casaste, em Lisboa, em 1959.
Contar-me-ão também o que a maioria dos frequentadores do Café A Brasileira em 1961 já sabe, regabofe colectivo: tu, e um grupo de malucos, entre os quais Virgílio Martinho e o poeta António José Forte, estão a programar, de mesa para mesa e em voz alta, a revolucionária “Operação Papagaio”. Numa das próximas noites vocês propõem-se bater à porta do Rádio Clube Português, que fica na Parede, povoação mesmo ao lado de Carcavelos. Lá dentro há apenas um contínuo enquanto roda a bobine com o programa nocturno “Companheiros da Alegria”. A porta é aberta. Vocês apontam um revólver, imobilizam, amarram e metem o contínuo num cacifo que depois fecham por fora, a cadeado. Entram no estúdio e trocam a bobine por uma outra que trazem convosco. Esta contem marchas militares, também o Hino Nacional tocado frequentemente e, a cada cinco minutos, notícias sobre movimentações militares para derrubar o Governo. Termina convidando a população a deslocar-se á Baixa de Lisboa para saudar os militares vitoriosos.
Enquanto gira a nova bobine vocês retiram-se do Rádio Clube Português. Ficarão, pelas esquinas, a aguardar a reacção dos ouvintes que, esperam, seja de entusiasmo...
Quem não aguarda é a PIDE, que vos prende mas fora d’A Brasileira, para não dar nas vistas. Durante o interrogatório os agentes, volta e meia, correm para o corredor a desrolhar as gargalhadas. Vocês ficam detidos uns quatro ou cinco dias, talvez uma semana. Depois levam uns safanões e são postos na rua. O espaço já é curto para arrecadar tantos subversivos, quanto mais uns brincalhões inofensivos...

BRASIL

Mário-Henrique Leiria localiza a sua alemã no Recife, mas não a incomoda. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.  
Ainda em 1961 a Fipsy fica de lotação esgotada com os teus desatinos e passa-te as palhetas, regressa à Alemanha. Depois, atrás de uma nova paixão, pira-se para o Brasil. Inconformado, vais à sua procura. O curioso é que nas voltas e contravoltas legais do divórcio pedido pela alemãzinha, acabarás por te apaixonar por Isabel Alves da Silva, a advogada portuguesa da tua mulher, ou ex-mulher... A Isabel não resiste ao romance. Mas tu aqui e ela acolá, às vezes o Atlântico pelo meio, acaba a Isabel por se casar com um irlandês. O que não impede que vocês, durante uns 14 anos, troquem cartas de amor, muitas.  Dirás tu: “O amor assim é mais barato...”
Em Abril de 1962 estou eu em São Paulo, sentado numa esplanada junto á Biblioteca Municipal, a beberricar uma cerveja. Levanto os olhos e vejo-te a passar, muito apressadinho.
- Mário, ó Mário-Henrique, ó grande sacana!
O grande abraço. Contas-me das tuas traduções de ficção científica para a colecção Argonauta. Sempre a conversar e a recordar os tempos idos, cruzamos a Itapetininga e descemos a Avenida de São João até ao Vale do Anhangabaú. Levo-te para minha casa. Apresento-te a minha mulher. Ela improvisa um jantar para o inesperado convidado. Acabas por felicitá-la pelo excelente caldo Knorr que, num instante, preparara. Gargalhadas e assim irrompe amizade bem-humorada...
Eu e a minha mulher temos três filhos com 7, 5 e 3 anos. Transformas os teus joelhos em cavalinhos e, enquanto os miúdos cavalgam, os teus dedos não se cansam de encharcá-los com cócegas desde o pescoço até aos pés...
Dois anos depois desapareces, perco a tua pista. Porém, por portas e travessas, saberei que localizaste a Fipsy em Recife. Mas não te aproximas, não a perturbas, ficas apenas a mirá-la, de longe, de muito longe...
Por essa época os problemas ósseos começam a atormentar-te. “Fiquei com um joelho (o direito) e um pé (o esquerdo) totalmente desarranjados, coisa que de vez em quando não me permite dar um passo e me chateia incrivelmente com dores”, assim te queixas, em carta de Dezembro de 64, à advogada Isabel, tua paixão fora de esquadria.
Em 74 dir-me-ás que andaste pelo Brasil a preparar stands para exposições, a encenar peças, a dirigir uma editora. Acredito que tudo isso tenha realmente acontecido. Mas quando depois me dizes que também andaste na luta armada contra a ditadura militar brasileira e contra outras ditaduras sul-americanas, tremo todo... Acho que voltaste às colagens surrealistas, “o que gostarias de ter feito” pespegado a cuspo sobre “aquilo que realmente fizeste”. Ai Papagaio Papagaio, ai Carbonária...

GIN-TONIC

CONTOS DO GIN-TONIC; a capa também é de Mário-Henrique Leiria


































NOVOS CONTOS DO GIN; a capa também é de Mário-Henrique Leiria.
  Sei que voltaste a Portugal em 1970. Reencontramo-nos em Lisboa em 74, depois do 25 de Abril. Tu empenado porque, só para te chatear, a tua estrutura óssea começa a desabar...
Eu bem sabia que em 73 lançaras os Contos do Gin-Tonic e nos princípios de 74 os Novos Contos do Gin. Mas só depois da Revolução dos Cravos é que a tua prosa pega como fogo em palheiro, sucessivas edições de um e outro livro. Como é possível a surrealidade converter-se de repente em best seller? Tenho um exemplo à mão que talvez explique o fenómeno: durante a maré-cheia de Abril os meus três filhos navegam da adolescência para a juventude. E é a ti, ó Mário-Henrique, é justamente a ti que eles escolhem para figura emblemática do vendaval. Os teus contos e os novos contos do Gin-Tonic, por causa da irreverência e rebeldia, são para eles apetitosas cartas de marear. Está explicado? Faço-me entender?
Já tinhas dado à sola desta vida quando o actor Mário Viegas, no teatro e na tv, começou a interpretar os teus Contos do Gin-Tonic. Nós de olhos fixos ora no palco, ora na tela, pontaria, garra e graça, ver e ouvir, ao mesmo tempo fruir dois Mários, o Leiria a escrever, o Viegas a dizer. Pena que não tivesses assistido aos espectáculos, bem sentimos a tua falta. Em 96 o Mário Viegas passou-se para o Além, também ele. Acho que foi à tua procura.
Agora, para recordar os velhos tempos, vou beber, de enfiada, nove dos teus copos de Gin-Tonic. Aí vou eu, aí vens tu:
 
TORAH
 
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.
 
SEPARATA GRATUITA
 
O QUE ACONTECERIA
SE O ARCEBISPO DE BEJA
FOSSE AO PORTO
E DISSESSE QUE ERA NAPOLEÃO
 
Toda a gente acreditava que era. O presidente da Câmara nomeava-o Comendador. Iam buscar a coluna de Nelson, tiravam o Nelson e punham o arcebispo lá em cima. E davam-lhe vinho do Porto.
Então o arcebispo dizia:
- Sou a Josefa de Óbidos.
Ainda acreditavam que era, embora menos. O presidente da Câmara apertava-lhe a mão. Iam buscar o castelo de Óbidos, tiravam os óbidos e punham o arcebispo na Torre de Menagem. Além disso, davam-lhe trouxas d’ovos.
Nessa altura, convicto, o arcebispo de Beja afirmava:
- Sou o arcebispo de Beja.
Não acreditavam. Davam-lhe imediatamente uma carga de porrada. E punham-no no olho da rua. Nu.
 
CARREIRISMO
 
Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o.
Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua.
Voltou passados vinte e dois anos, com chofer fardado.
Era Director Geral das Polícias. Seu pai teve o enfarte.
 
ÚLTIMA TENTAÇÃO
 
Então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pêra pequenina e pálida.
Ficaram os dois numa desesperante frustração.
Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato!
 
CONTABILIDADE FINAL
 
Parece mentira, mas ainda não recebi os rublos moscovitas. E esta, ein! Só tenho coisas que me ralem.
 
RIFÃO QUOTIDIANO
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

 
EXAGEROS
 
O Alfredo atirou o jornal ao chão, irritadíssimo, e virou-se para mim:
- Estes jornalistas! Passam a vida a inventar coisas, é o que te digo. Então não afirmam que, no Sardoal, foi encontrado um frango com três pernas! Vê lá tu! É preciso ter descaramento.
Ajeitou-se melhor no sofá e, realmente indignado, coçou a tromba com a pata do meio.
 
CASAMENTO
 
“Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.”
Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto estrangulei-a e fui-me embora.
 
HISTÓRIA EXEMPLAR
 
Entrei.
- Tire o chapéu – disse o Senhor Director.
Tirei o chapéu.
- Sente-se – determinou o Senhor Director.
Sentei-me.
- O que deseja? – investigou o Senhor Director.
Levantei-me, pus o chapéu e dei duas latadas no Senhor Director.
Saí.

O COISO


Mário-Henrique Leiria é o chefe de redacção de O COISO, suplemento do diário A REPÚBLICA. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
 
Com Rui Lemus, Carlos Barradas, Couto e Santos e uns tantos outros, congeminas e a 7 de Março de 1975 és o chefe de redacção de O COISO, novo suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Provocação e humor negro a acelerar nas curvas, entrevistas apócrifas com Spínola, Kissinger, Hitler, Pinochet, Salazar, Marcelo Caetano, etc. e  fotomontagens a ilustrá-las; por exemplo, Kissinger a dançar empunhando uma foice e um martelo; ou o Spínola convertido em musculoso “cabo de mar” na praia de Copacabana... Mas a irreverência incomoda muitos dos jornalistas teus colegas. Nem sequer os comunistas a aparam lá muito bem, porque estás sempre a gozar com tudo e com todos, até com os chapéus, os gorros, os bonés, os barretes e as carapuças do camarada Brejnev... Na Redacção, por entre gargalhadas, quem frontalmente te apoia é o Fernando Assis Pacheco, também o Álvaro Belo Marques e poucos mais. Um dia preparas-te para publicar na primeira página de O COISO uma violenta caricatura não só à boina, mas também à cabeça do Raul Rego, o director d’A REPÚBLICA. Caricatura congelada pela direcção do jornal e eis a gota que faz transbordar a hostilidade entre o radicalismo m-l dos operários gráficos e o socialismo bem comportado da administração e da maioria dos redactores. Extremam-se posições. Na rua, frente ao jornal, enfrentam-se piquetes ora aplaudidos, ora vaiados pelo público que, de hora a hora, vai mudando conforme as mobilizações partidárias. A REPÚBLICA acaba por ser suspensa, fechada mesmo em 19 de Maio de 1975. Também O COISO, está-se a ver. Do suplemento lançaste 11 números. O último foi em 16 de Maio de 1975.
A fome começa a rondar-te porque os direitos autorais dos teus Contos e Novos Contos do Gin chegam sempre tarde e a más horas ao teu bolso.
VODKA & CIA. LDA.
CASOS DE DIREITO GALÁTICO, de Mário-Henrique Leiria; capa e ilustrações de Cruzeiro Seixas.
 
Apesar de cada vez mais empenado, ainda vais escrevendo e publicando:   Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças, Casos de Direito Galáctico (de tradutor passas a autor de ficção científica) seguido de O Mundo Inquietante de Josela (fragmentos), Lisboa ao voo do pássaro.
Para te ajudar a ultrapassar as dificuldades financeiras, uma jornalista reúne uns tantos amigos para, em conjunto, te comprarem mantimentos. Quando eles batem à tua porta, atiras as provisões pela escada abaixo e tratas de insultá-los. Não aceitas esmolas, de ninguém!
Sim, aquela escada da mesma e velha vivenda em Carcavelos. Ali moras agora com a tua mãe e uma tia, duas velhotas que já rondam os 90 anos. Também com o Vodka, um cão-linguiça todo preto e encorpado, em cujo pescoço de vez em quando armas um laçarote encarnado, pois os canitos também têm direito à Revolução. Porém o Vodka não está muito interessado em revoluções, prefere abocanhar e fugir com as tuas peúgas. Corres, ou tentas correr atrás dele. Levantas a bengala, erras o alvo e acertas a porrada mas é nos costados da tua tia. Lá vai a velha de charola para o hospital de Cascais. Por cima do cancro que a devora, tem agora uma costela partida... Um sarilho!
DERRADEIRO FAX
 
A 25 de Novembro de 1975 o General Eanes e o Grupo dos Nove dão um golpe militar para travar Abril montado no esquerdismo galopante. Ficas muito preocupado, temes o regresso ao tempo da Outra Senhora, ao fascismo. Tratas logo de aderir ao PRP - Partido Revolucionário do Proletariado - da Isabel do Carmo e do Carlos Antunes, que insistem na acção armada para defender a Revolução.
- Ó Mário-Henrique: mas se nem uma bengala tu consegues segurar como deve de ser, quanto mais uma espingarda ou metralhadora...
Que te importa! O que é preciso é agitar a ideia da acção armada, ai Carbonária, Carbonária...
Muitas vezes vou bater à tua porta a convidar-te a dar uma volta de carro. Aceitas sempre. De Carcavelos vamos à praia do Guincho e depois subimos à Serra de Sintra. Gostas muito de ir até ao Cabo da Roca. Será por causa da paisagem agreste, ou por ser ali a ponta mais ocidental da Europa? Sabe-se lá o que se passa pelos teus miolos...
Em Janeiro de 1980 és internado no hospital de Cascais. Um lampejo, a Fipsy, a Isabel e, sem dares cavaco aos amigos, passas-te. És um chato!
Bem, acho que já acabei a evocação da tua vida e da tua obra, vou botar aqui um ponto final.
Espera, espera aí um instante que está a chegar um fax. Não me surpreende: é o São Pedro a lamentar-se que não desistes de converter o Império do Céu em República Popular do Purgatório.


Livro marcante de uma época e de uma personalidade histórica do movimento surrealista português.
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