Textos Malditos
Luiz Pacheco
Edições Afrodite
1ª edição 1977
164 p
Colecção Autores I
Capa e ilustrações de Henrique Manuel
Edição e arranjo gráfico de Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite
Vendido separadamente ou em conjunto com
A ÚLTIMA SESSÃO: A EDIÇÃO DOS “TEXTOS MALDITOS” DE LUIZ PACHECO
Texto, design e edição © Pedro Piedade Marques | Maio de 2012
18 x15 cm, 40 páginas | ISBN 978-989-20-3019-7
Textos Malditos
Luiz Pacheco
Edições Afrodite
1ª edição 1977
164 p
Colecção Autores I
Capa e ilustrações de Henrique Manuel
Edição e arranjo gráfico de Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite
Vendido separadamente ou em conjunto com
A ÚLTIMA SESSÃO: A EDIÇÃO DOS “TEXTOS MALDITOS” DE LUIZ PACHECO
Texto, design e edição © Pedro Piedade Marques | Maio de 2012
18 x15 cm, 40 páginas | ISBN 978-989-20-3019-7
Texto, design e edição © Pedro Piedade Marques | Maio de 2012
18 x15 cm, 40 páginas | ISBN 978-989-20-3019-7
Em 1977, Luiz Pacheco viu finalmente reunidos nestes Textos Malditos os seus textos “proibidos” até à Revolução, publicados no brilhante catálogo da Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello. Teve também a certeira união de um universo gráfico à sua obra, o de Henrique Manuel. Livro icónico mas minado por tensões pessoais, foi também um livro crepuscular que marcou o início do correr de cortinas nas carreiras destes três actores excêntricos no palco da cultura portuguesa.
Livro dos mais raros de Luiz Pacheco
À memória do Dr. António Maldonado Freitas e aos Dr. António Maria Pereira e Dr. Fernando da Rocha Calixto felizmente vivíssimos causídicos graciosos do Pequeno Libertino
Off. Ded. & Consagra
O Auctor
«PORTO / LISBOA, A PEDIR
ESMOLA
Vinha a fugir à
polícia já não sei bem porquê (ou sei?) desde a Régua. Para despistar, apeei-me
do comboio em Valongo, fazia um frio que nem calculam. De camioneta para o
Porto, depois de um café com bagaços. Fui ao Teatro Experimental do Porto pedir
ao João Guedes dinheiro para a viagem até Lisboa amada. Mas ele que me viu
transtornado (supôs que era dos copos) abonou-me só cinquentas. Não dava. Não
chegava.
Resolvi atacar a fundo. E, tomando precauções disfarçatórias, muito
antes da hora do comboio, o correio, fui falar com o chefe da estação de São
Bento. A quem expus, um pouco atabalhoadamente: tinha em Lisboa uma pessoa de
família gravemente doente (era mentira, como sabem) e havia de tomar o comboio
desse lá por onde desse. E porque isto e aquilo. E assim e mais assim. O tipo,
quando me viu tão resoluto, não percebi se me quis ajudar ou se foi só para me
despachar em beleza. Disse-me: "Vá à bilheteira e tire bilhete até onde chegar o
dinheiro. Depois fale com o chefe do comboio." Achei que era um empurrão e
valioso. Quanto mais longe da polícia (que me topara em Ermesinde e nunca mais
me largava) melhor. Fui à bilheteira e comprei bilhete para Soure. Depois,
sempre a disfarçar, e porque na hora do comboio podia haver vigilância em São
Bento, como já me tinha acontecido antes, resolvi tomar o comboio na gare das
Devesas, que era discreta. E atravessei o rio, pelo tabuleiro inferior da ponte,
a pé. Nas Devesas não houve azar nenhum e, entrado no comboio, encharcadíssimo,
com a gabardina que, torcida e escorrida, parecia um esfregão, comecei a
choinar, encostado ao aquecimento. Assim vim, até que passadas horas (o comboio
vinha cheio, era meados de Dezembro e aproximavam-se as Festas), decidi-me a
seguir o conselho do chefe de São Bento. Não fosse ultrapassar Soure e entrar em
transgressão. Com os sarilhos que me perseguiam, não convinha acumular. Procurei
o revisor e disse-lhe: "Olhe que o meu bilhete é para Soure mas eu vou até
Lisboa. Depois telefono e vem um amigo meu que paga a diferença, a muita e o
mais que for preciso." E para meter o homem no coração, impingi-lhe a história
da pessoa de família, etc. E por ora, e porque deixa. Patati, patatá. Capisce? O
homem ouviu ouviu e foi chamar o chefe da composição. Que era um traquinas de
palmo e meio (com homem pequenino não te metas…), ressequido e velhaco, irado.
Mais bera que os beras. Este foi ditatorial: que eu havia de me apear em Soure e
mai’ nada. Não atendia ao amor de família, o anãozinho, Deus lhe perdoe! Como
sou teimoso e não gosto de ser contrariado, barafustei com o tipo. "Dali (do
comboio em andamento e a parar quando lhe parecia conforme o horário do
percurso) ninguém me arrancava!" Repeti uma data de vezes a aldrabice da doença
familiar e ia ganhando tempo, que era o meu fito. O revisor, ao lado, não dizia
nada. Olhava para um e para o outro. Ouvia, calado. Como se meditasse. Como se
me estivesse a dar razão. Quase. Visto que não abria o bico e não fazia coro com
o chefe. E com isto passámos Soure. A minha causa ia em bom andamento. O chefe
do comboio ainda me voltou a dizer das boas mas agora o caso era outro.
Qual
era? Eu ia em transgressão, mas cumprira as ordens do chefe de São Bento, que
era o que importava. Agora o problema não era meu (mas dele, revisor; por isso
acho que este rapaz merece uma palavra amorável neste verídico relato.
Ajudou-me, como o outro, talvez sem querer. Apenas por comodidade. Apenas? Nada
de exigências éticas: vão lá saber as razões de cada qual).
De quem era o
problema? Pois do revisor. Que mo expôs. Era uma chatice. Chegados a Santa
Apolónia, ele tinha de levantar um auto, devia regressar ao Porto no comboio das
onze e tudo aquilo era uma trabalheira, uma maçada. "Por acaso", insinuou com
certo optimismo, lisonjeiro para mim, "eu não tinha qualquer objecto de valor
que pudesse deixar como penhor?"; ele confiava. "Um relógio, um…" Eu não tinha
nada. Mostrei-lhe a gabardina. Ficámos ambos desolados, desanimados. Não valia
nada, nadinha.
Em face do que…
"O senhor podia era pedir. Toda a gente dá.
Já uma vez me aconteceu…", sugeria o homenzinho, a tornar-se prestável, a ser
amigo, sincero ou quê? também me queria despachar?… mas no bom sentido (e o
porquê das razões de cada um, etc.), e digo já porquê: o comhoio galgava Coimbra
e ia apitando pela noite dentro, deixando sempre mais espaço (que em casos de
polícia é o principal) entre mim e os xuis nortenhos.
"O senhor podia
pedir."
"Pedir?!!!", protestei indignadíssimo, altivíssimo e outros
superlativos do orgulho ferido (é que a ideia não me convencia, não me surgia
prática).
"Sim senhor. Pois, pois. Pedir dá resultado." E foi uma nova e
grande discussão, mas em termos amenos. De coexistência pacífica, diríamos hoje.
Eu com a doença imaginária do parente, ele por via das chatices burocráticas da
C. P., do que era agora o meu caso, marrámos, desfilámos uns quilómetros, o que
constituía, de qualquer modo, vantagem a meu favor. "Sempre a andar, meu lindo!
apita e não pares!", badalava em silêncio o meu coração alvoroçado, a
encolher-se de medo. Por fora, era todo nobreza (eu). Mas convenci-me. O tipo
estava a ser tão porreiro. E depois era questão de experimentar. Se não desse,
voltávamos ao meu ponto. Disse afinal que sim, estava bem.
Aquilo foi
limpinho. O revisor falou alto para uma carruagem de terceira que ia à cunha,
nos bancos e no corredor, gente ensonada e moída, bacolejada, embalada pelo
ritmo das vigas de aço; muitas malas, cestos e bagagem vária, alguns garrafões
de mão em mão, ensopando goelas.
O revisor fez-se ouvir (era uma autoridade,
ali):
– Aqui este homem (ofendi-me todo) não tem dinheiro para a passagem e
chegando a Lisboa fica preso (exagero). Os senhores querem ajudar?
Houve um
silêncio. Curiosidade. Expectativa.
– Eu sou o primeiro a dar – disse o
revisor, como se alguém lhe tivesse pedido alguma coisa. Mas era para mostrar
que era camarada e demonstrar exemplo. Vai nisto, mete-me na mão dez
tostões.
– Ai, é assim?! – disse eu. – Atão, também eu dou.
E com a
direita meti na esquerda todos os trocos que tinha na algibeira. Começámos o
peditório. O revisor só não aceitava de magalas, que, coitados. O mais, o que
viesse era bem dado, repetia. Em carruagem de terceira e mais meia eu tinha a
mão cheia de moedas, e já de vinte e cinco tostões, cinco escudos, já dezes.
Começámos a ferver. E o entusiasmo contagiou-se. Havia quem gritasse: "Canto é
que falta queu ponho o resto?!" (o que comprova a doutrina que os grandes
movimentos de solidariedade colectiva o bom é começá-los e não só: prova a
generosidade da gente portuguesa, pormenor típico que me é grato registar, já
que era eu o beneficiado). E mais do que um. Aquilo viria a ser o maior negócio
do ano? olha se se explorasse comercialmente, industrialmente? começava a
delirar. Mas o revisor cortou-me as esperanças, as ambições:
– Ora conte lá!
– ordenou.
O que fiz. O percurso Soure-Lisboa, mais o excesso, os por cento
da multa, faltava pouco. E apareciam voluntários que queriam arrematar, com um
calor (talvez dos copos mas) sentido, exuberante. Os nossos votos (eu e o
revisor) estavam em leilão. Um tipo qualquer pagou o resto, com os meus
agradecimentos. E enquanto o revisor me passava um papelinho, escrito num lápis
comovido, eu procurava um canto para choinar, legalizado, legalmente. Nem
pensava em despistar. Aquilo correra muito melhor do que pensara.
Pensava.
Fui preso oito dias depois, em Bucelas, num pequeno café, quando via e ouvia a
Sinfonia Incompleta na televisão. E o João Miguel, o meu filho mais velho, então
um garoto, que estava ao lado, não gostou da coisa. Era quase Natal
(1959).»
[in Textos
Malditos: Lisboa, Afrodite (de Fernando Ribeiro de Mello), 1977]
Esta edição arquiva e resguarda do tempo a inconfundível ficção dum autor cujos textos sofreram – talvez mais do que os de ninguém – a perseguição da moral farisaica (e não só...) que entre nós imperou num passado ainda recente.
Se Luiz Pacheco se pode considerar como um autor «marginal», este rótulo não deriva de qualquer fantasia. O autor esteve de facto «marginalizado» na acepção mais ampla do termo.
Mais amplas se tornaram, no entanto, as liberdades que conquistámos numa manhã de Abril. E de tão amplas nos pregaram tal susto que hoje ainda poderá o leitor interrogar-se acerca do verdadeiro alvo da mordacidade, da irreverência, da iconoclastia, da inegável contundência destes TEXTOS MALDITOS – cuja circulação, na longa noite fascista (é como dizemos), se viu perturbada por obstáculos de vária ordem e desordem, desde a venda subreptícia à mão do comprador (não é retórica!) desde a apreensão até aos sinistro Tribunal Plenário... vade retro!
Estes textos sobrevivem, apesar das censuras e dos atropelos, contestando a boa-consciência ou a «unicidade» do estilo. Escaparam e escaparão – disso estamos certos - àquelas recuperações ou tentações militantes em que o nosso tempo tem sido fértil.
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