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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Bernardo Santareno. António Marinheiro (o édipo de Alfama). sd ( 1960) 1ª edição. Divulgação. Porto

Bernardo Santareno

António Marinheiro (o édipo de Alfama)

Peça em 3 actos

Porto

s.d. ( 1960)

1ª edição

capa de António Emílio Teixeira Lopes

Edição do autor

Divulgação - Porto

Obra marcante no percurso de Bernardo Santareno









Livro com lombada em mau estado do uso intenso. 
Muito valorizada pela dedicatória do autor datada de Janeiro de 1968 à atriz Olga da Fonseca que iria representar na peça a personagem de "Bernarda".


A curiosidade da obra é que os diálogos de Bernarda estão sublinhados, marcados e com anotações de indicação à actriz da colocação no palco, expressão artística a adoptar nessas cenas e indicação de deixas.






De Tebas a Alfama: Bernardo Santareno e o mito de édipo*

Maria Eugénia Pereira
Universidade de Aveiro
C’est tentant de photographier la Grèce en aéroplane. 
On lui découvre un aspect tout neuf.
A vol d’oiseau de grandes beautés disparaissent,
d’autres surgissent; il se forme des rapprochements,
des blocs, des ombres, des angles, des reliefs inattendus.

Cocteau, Antigone

Presente na nossa linguagem quotidiana, definido de forma singular pelos eruditos, o mito representa um campo de batalha onde historiadores, historiadores das religiões, antropólogos, psiquiatras procuram dar provas do seu saber. Mas, como nos diz Mircea Eliade, porque «o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ter uma abordagem e uma interpretação em perspectivas múltiplas e complementares»1, a sua designação resulta de um conjunto de noções que se sobrepõem e que se opõem, delimitando o tipo de abordagem realizado pela corrente de pensamento de uma época.

Também não falta uma série de interpretações do mito de Édipo uma vez que os teóricos o tomaram como exemplo para estabelecer a pertinência dos seus métodos, mas, talvez a representação filosófica e histórica do mito seja aquela que melhor se adeque à adaptação, no século XX, de mitos antigos, gregos e romanos. O desejo de querer fugir de uma sociedade, que pretende ser lógica e objectiva, leva a que o mito seja utilizado ou recriado, tornando-se um dos suportes mentais do homo sapiens. Dado que o tempo que o homem dedica à imaginação é cada vez menor, e tem tendência para desaparecer, há, pois, que lutar contra esse fenómeno para conseguir sobreviver, para estabelecer um equilíbrio na vida. Victor Jabouille diz-nos a esse respeito que:Depois de Freud, Jung, Fromm, Bachelard e Durand, sabemos que o homem, para sobreviver,
precisa não só de imagens como, sobretudo, de fabricar sequências com essas imagens.2 

Bernardo Santareno sentiu essa necessidade de se afastar da vida real e procurou instalar-se num mundo onde pretendia encontrar novas forças para criar ou inventar e esse mundo é o do mito. É nesse universo mítico que se desenvolve a sua peça em 3 actos António Marinheiro (o Édipo de Alfama). Nela, o autor exprime, através de uma transposição popular directa da tragédia grega Rei Édipo de Sófocles, e de uma transposição indirecta do complexo de Édipo, a sua verdade, a da maldição que pesa sobre as mulheres e a da inibição para o amor dos homens.

Partindo do princípio que o mito é a verdade de um universo primitivo onde predomina a unidade absoluta entre os seres, os deuses e as coisas, talvez possamos debruçar-nos sobre a representação filosófica e histórica do mito, concebida e exposta por Gusdorf na sua tese Mythe et métaphysique3, para explicar a natureza do mito na obra de Bernardo Santareno. 

Gusdorf estuda o mito e a sua natureza em três momentos diferentes da sua história: o primeiro, do mito vivido pela consciência mítica nos tempos imemoriáveis de um Éden pré-adamita; o segundo, do mito pensado e organizado pela consciência intelectual da época clássica - essa submissão à inteligência anula qualquer possibilidade de autenticidade e redu-lo à simples forma de um discurso - ; o terceiro, do mito readmitido pela consciência existencial que permanece insatisfeita perante as explicações da razão triunfante. 

Partindo do pressuposto que o mito deve ser encarado e vivido como a verdade, e já não como uma lenda, um relato de acontecimentos extraordinários, ele «constitui um formulário ou uma estilística do comportamento humano na sua inserção entre as coisas»4.Não sendo separado do contexto existencial a que pertence, ele adquire uma função de participação, de intervenção que ajuda o homem a compreender-se.

Bernardo Santareno também vai utilizar o mito para exprimir a sua verdade, a de uma realidade vivida num universo autêntico, mas, não podendo abstrair-se da cultura e do pensamento da sua época, a sua criação vai querer partilhar o discurso e o modo de pensamento de grande parte dos intelectuais da sua época5.

Tal como os seus contemporâneos, Gide, Cocteau, Giraudoux e Anouilh, Bernardo Santareno vai apoderar-se da evolução do mito, que vai do seu estado primitivo de verdade autêntica e vivida à forma intelectual que adquiriu finalmente. A mitologia, assim integrada no universo do discurso, transforma-se num dispositivo intemporal, tornando-se palavra explicativa das situações e dos seres, e reduto das formas de escrita e de pensamento. Exprime, pois, a reflexão de uma época e a consciência humana de todos os tempos.

Nessa perspectiva, e segundo também Ana Paula Medeiros, na sua tese Do Teatro em Bernardo Santareno, se deve situar o dramaturgo que possui «um misto de concepções românticas (…) – que correspondem à necessidade de regresso a uma pureza perdida – e, simultaneamente, uma atracção pela mítica cultura grega»6, sendo esta uma referência permanente em toda a sua obra.

A sua obra, António Marinheiro (O Édipo de Alfama), depende fortemente do tempo histórico em que se encontra ancorada sem deixar, contudo, de renovar o mais antigo dos discursos literários, a fábula mitológica do rei de Tebas, para tentar reaver um absoluto, um tempo que está, definitivamente, perdido para o homem.

Procurando um público que fosse capaz de o entender, de penetrar o significado do seu discurso, o poeta pensou encontrar na mitologia o meio mais seguro de alcançar a consciência universal.

No entanto, o autor transcende a mera recriação de uma linguagem ou de um modo de comunicação: ele respeita também o ser singular que ele representa. Na sua imitação, retém, antes de mais, o que os verdadeiros criadores de mitos lhe deixaram e transforma o que a sua intuição, quase infalível, lhe determinava escolher. O mito adquire, assim, a forma íntima do seu ser e das suas angústias.

A dramaturgia "santariana" exprime e exterioriza as próprias perplexidades do autor, originadas pela experiência pessoal, mas não esquece o contexto estilístico, idelógico e social que a circunda:

A obra de um dramaturgo autêntico terá de ser, em grande parte, o homem que ele for. É claro que não me refiro a grosseiros aspectos biográficos; penso na sua realidade interior, nas coordenadas éticas, políticas e religiosas que o norteiam. Assim é que Bertholt Brecht criou um teatro sociológico, Ionesco o auto-teatro e Paul Claudel um teatro católico. (…) Aliás, se é autêntico, o dramaturgo não pode realmente, mesmo que queira, sair de si, do seu mundo, das suas verdades, dos seus obscuros movimentos de afectos e instinto. Pode, sim, alargá-los, engrendecê-los, fazendo-os viver por personagens muito acima do homem que ele é.»7

O autor existe na e para a sua obra, na medida em que escreve para actuar, para alterar o panorama político e cultural da sua época. Confrontado com o autoritarismo do poder censório, Santareno procurava criar o seu próprio caminho no seio da dramaturgia quer portuguesa, quer europeia. A liberdade escolhida pelas suas personagens Amália e António encontramo-la no dramaturgo quando tematiza problemas da actualidade. Tendo a realidade portuguesa como pano de fundo, Bernardo Santareno pretende questionar essa mesma realidade. Mais ainda, ele pretende circunscrever essa realidade a um local preciso, bem determinado: Portugal, Lisboa e, mais precisamente, o bairro de Alfama. 

Mas entenda-se por vontade de localizar, de recriar uma cenografia portuguesa, um meio de alcançar o universal. Como ele próprio nos diz (no Jornal de Letras e Artes):

Quero, sempre e cada vez mais a partir do «local», esforçar-me, ampliar-me no sentido de chegar ao «universal». (…) Cada vez estou menos disposto a «cosmopolizar-me»: cada vez mais, as minhas peças serão testemunho do meu povo, nesta hora. Testemunho interessado, participante e interveniente, comovido.»8

Assim, em António Marinheiro, o autor retira as suas personagens do interior das muralhas de Tebas, antes de Jesus Cristo, e coloca-as na segunda metade do século XX, fá-las viver num cenário típico onde o fado, o vinho e a taberna são elementos caracterizadores de uma mentalidade pitorescamente portuguesa. O marujo lisboeta que é António Marinheiro, a costureira que é Amália são o Édipo e a Jocasta de Sófocles despojados da sua realeza. O drama desceu até ao povo, o povo português para tratar problemas universais, comuns a todos os homens: o desespero, o medo, o amor, a morte, a liberdade, o destino.

Em António Marinheiro (O Édipo de Alfama), o artista afere a validade de alguns processos dramatúrgicos conhecidos da modernidade europeia, apesar de estes serem mais evidentes na segunda fase da sua obra, depois da sua peça o Judeu de 1966. Fascinado pela tragédia antiga, Santareno reescreve-a para testemunhar a tragicidade contemporânea onde se encontra o «sentimento trágico da existência» que Lorca, Sartre, Genet, assim como Beckett e Ionesco, já exprimiam. Esta peça surge, pois, de uma articulação entre uma influência longínqua - o trágico grego - e uma influência mais próxima - o absurdo9 «como que a confirmar que o trágico não está, pois, nos acontecimentos, nem exclusivamente nos homens. Reside, essencialmente, na especial relação que os implica (…)».10

António Marinheiro obedece, tal como Édipo, a forças superiores – o destino, aqui o fado - que o vão dilacerando até que se reencontre com a sua verdadeira identidade: avança, passo a passo, para a catástrofe. Como diz a personagem Rosa: «É este o meu fado: cada qual é pró que nasce…»11. 

António é conduzido para o mal involuntariamente: «Antes de te encontrar, eu não me sentia bem em nenhum lado: tinha uma coisa aqui dentro sempre a roer, a roer… uma força que, sem descanso, me empurrava nem sei pra onde»12. Ele é empurrado para o assassínio de um homem e é levado a apaixonar-se por uma mulher que lhe corresponderá: é o fado, o destino, mau, porque esse homem era seu pai e essa mulher sua mãe. Onde esteve a liberdade?

Descoberto o mal – o incesto e o parricídio -, as normas sociais deveriam levar à culpabilidade e ao castigo das personagens principais – Amália e António -, mas, recusando a penitência social, fazem do destino o «derradeiro obstáculo à plena realização da liberdade humana.»13 As personagens lutando contra a normatividade e escolhendo o seu caminho, afirmam o seu eu sincero. O povo do bairro de Alfama reclama a morte de António e de Amália pelo incesto cometido mas, assumindo, definitivamente, o seu papel de marido e mulher que se amam, correm um para o outro e beijam-se desesperadamente mas, também, apaixonadamente14. Esta novidade "santariana" obriga a um desenlace forçosamente diferente da obra modelo: António afirma a sua liberdade partindo com Rui, e Amália, contrariando a propensão maternal, presente em todas as outras adaptações edipianas, decide-se pela mullher e não pela mãe. Por isso, perante a exigência do povo que se mate15, a mulher apaixonada, inocente no crime, na medida em que ignorava os laços de sangue que a uniam a António, decide viver: «Quero viver!!… Hei-de viver, Rosa!… Que ninguém me toque!… Que ninguém me faça mal!!… Hei-de viver»16. Como nos diz Vítor Jabouille na sua tese intitulada Édipo: da antiguidade aos nossos dias, «(…) Amália afirma o abater da moral e o erigir uma nova em que imperam os sentimentos individuais sobre os conceitos pré-estabelecidos e impostos»17.

Menos inocente que no mito clássico – onde Édipo recebe Jocasta em casamento porque venceu a esfinge –, o relacionamento de António e Amália repousa sobre o assassínio de José, marido de Amália, por António. Perante o povo do bairro de Alfama, e de toda uma sociedade impregnada de falsa moralidade ou, melhor dizendo, de um código moral muito tradicional, - aqui, constantemente representado por Bernarda - , a aproximação entre os dois é logo amaldiçoada. Já, nesta sua afirmação do amor, apesar do homicídio cometido, as duas personagens principais afirmam a sua liberdade porque decidiram que se concretizasse o amor entre ambos e que se realizasse o casamento. Esta liberdade de acção vai culminar, no final da obra, numa liberdade existencial.

A afirmação da liberdade, que valoriza a obra santariana, tem uma função de intervençã,o na medida em que contribui para uma maior consciencialização do que é humano. A acção humana é, nesta peça, orientada segundo um horizonte previamente definido: a moral tradicional. O homem, para cumprir o seu verdadeiro papel, que é o de desmascarar, de denunciar e de libertar, desafia o seu próprio destino e a sociedade evitando a morte e o castigo do modelo clássico.

As estruturas do mito de Édipo, sendo permanentes, voltaram a ser colocadas no presente para perpetuar uma realidade ontológica. Bernardo Santareno reinterpreta o papel exemplar dos heróis clássicos para alcançar o universo primitivo: o da realidade da vida humana fora do tempo.

Através dos dilemas e conflitos da sua heroína, o autor pretende contestar, intervir e actuar para um mundo melhor, onde a pureza existe no seu estado primitivo, despojada de qualquer artefacto socializante que impeça a individualização do ser humano. Assim sendo, a sua peça António Marinheiro ganha significação intemporal.


Preço : 40€ 

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