Antologia do Humor Português
VIRGÍLIO MARTINHO, org. e notas
ERNESTO SAMPAIO, org., prefácio e notas
desenhos de Carlos Ferreiro, Eduardo Batarda, João Machado e José Rodrigues
em conjunto com
Antologia do Humor Português
Nuno Artur Silva, Inês Fonseca Santos.
Antologia do humor português mas só o que saiu em livro e mesmo assim há uns que, se calhar, não deviam aqui estar e outros que não estão e deviam estar. É como em tudo.
1969-2009 mais ou menos, enfim, 18 de abril de 2008, até à hora do almoço o mais tardar.
Lisboa
Texto Editores
2009.
Sobre a edição original:
Lisboa, 1969
Edições «Afrodite» de Fernando Ribeiro de Mello
tipografia União Gráfica
1.ª edição [única]
21 cm x 14,5 cm
XXVIII págs. + 1.008 págs.
ilustrado
Magnífica! A mais magnífica incursão jamais feita ao corpus de literatura portuguesa, de onde os organizadores fazem saltar um espírito, um chiste, em pleno arraial do país sisudo e sufocado pelo Estado Novo. Outras antologias saídas dessa editora foram perseguidas pelas polícias, é público e basto conhecido, como a do Conto Fantástico ou a Erótica e Satírica; mas esta, verdadeiramente, melhor expõe um país... Lembra-nos o escritor surrealista Ernesto Sampaio no texto de abertura:
«[...] O humor, que na verdade é um dos privilégios da poesia, constitui, como o amor e a vontade prática revolucionária, a única força compósita capaz de restituir ao homem a sua dignidade autêntica. [...]
[...] resta-nos mencionar o humor, no ponto de cruzamento do desejo sem meios e dos meios sem desejo, como suprema lucidez, arte de denunciar e perseguir até aos seus covis mais recônditos os absurdos de uma situação irrisória e injusta em todos os planos, de uma lei fundamentada no dinheiro, no horror ao corpo, na baixeza obrigatória do espírito, no incessante atentado ao amor, a todos os poderes de afirmação e criação do homem livre, do homem que não cabe nos esquemas daqueles que ao comprarem a sua força de trabalho pretendem comprá-lo todo, em corpo e alma. [...]»
E para não destoar do projecto, o próprio editor Ribeiro de Mello espetou com o volume a ser composto e impresso numa tipografia da esfera de influência da Igreja! E não contente com isso, o que já não foi pouco, ainda pôs na ficha técnica os nomes dos intervenientes nos trabalhos, com especial relevo para as «irmãs» e respectiva congregação!
Escusado será dizer que poucos destes exemplares terão sobrevivido após a descoberta pelos responsáveis da oficina gráfica... Tendo, assim, saído dos prelos três versões distintas da pág. 1.006: a referida; uma outra em que a folha foi guilhotinada e substituída por uma com o cólofon resumido a quatro linhas; e ainda outra (a vertente) em que todos os nomes voltam aí a figurar, mas expurgados dos cargos religiosos.
Sobre a edição possível de continuação da edição original:
Contraditando alguns dos fundamentais propósitos daquilo que se convencionou que um bom título deve patentear (concisão, precisão, facilidade de memorização, etc., emerge como inusitada a atribuição de um título tão extenso (53 palavras e 206 caracteres) a uma obra contemporânea. Os percursos e discursos humorísticos trilham justamente o caminho do desvio: a evasão à lógica cognoscível, o subterfúgio à atitude comummente ditada e aceite pela ordem social, a deslocação de significado no dizer e na intenção que subjaz a esse modo de dizer.
Em metade das palavras exibidas pelo título desta antologia direi que, em termos genéricos, o traço genealógico comum à confluência de géneros e de tipologias textuais aqui coligidos consubstancia-se no
humor, no seu registo estritamente escrito, sem recurso à imagem. Na esteira do trabalho de Fernando Ribeiro de Mello – Antologia do Humor Português –, dada à estampa em 1969, a colectânea que ora
se apresenta compila textos extraídos de obras publicadas, quer a título individual, quer colectivamente escritas, retomando o final da década de 60 do século XX, ostentando registos humorísticos até 2009
(ou melhor: “1969-2009 mais ou menos enfim, 18 de Abril de 2008”).
Ténue é a fronteira que demarca o humor de uma postura séria. Como Henri Bergson (74) propunha, no seu estudo seminal sobre o riso, todo e qualquer assunto se torna matéria passível de desencadear o riso no ser humano. Na verdade, é no contexto que radica a (in)validação do humor. Por esta razão, na “Introdução” à presente crestomatia, surge com propriedade a referência à “circunstância” a partir da qual eclode o enunciado humorístico.
Ao longo da leitura desta selecta, são oferecidas ao leitor determinadas coordenadas alusivas à biobibliografia de cada um dos autores, sendo algumas linhas dedicadas ao tipo de humor produzido, bem como às circunstâncias socioeconómicas, políticas e culturais, atinentes à criação do humor. Daí que seja legítimo que muitos dos textos evoquem uma conjuntura outra e nela aufiram sentidos outros, que a contemporaneidade se vê impossibilitada de lhes conferir. Por conseguinte, é precisamente à luz das circunstâncias, em que o humor se alicerça, que muitos dos textos recriam o seu sentido humorístico hoje em dia.
Embora o humor seja um conceito pejado de subjectivismo e de relativismo, de difícil quantificação objectiva, os textos que constituem o corpus desta antologia, exibem, grosso modo, uma concepção de jogo de palavras ou de contextos gerador de diversão e de prazer, intrínseco ao processo de desenvolvimento do ser humano.
Da manutenção do jogo que aqui se cria, ressaltam objectivamente alguns mecanismos linguísticos basilares, nomeadamente alguns recursos estilísticos (como a ironia, a hipérbole, a antítese, a repetição…) a incongruência semântica, a paródia, a intertextualidade, a ambiguidade, entre outros.
No seu cômputo geral, todos os textos coligidos obedecem aos preceitos do desvio e do jogo em que o humor desponta inadvertidamente, privilegiando um ou mais mecanismos linguísticos em detrimento de outro(s), perfazendo, assim, uma colectânea de copiosa diversidade textual, ocasionando diversos graus de riso. Não obstante, e como os próprios autores advertem no título: “(…) e mesmo assim há uns [textos do humor português] que, se calhar, não deviam aqui estar e outros que não estão e deviam estar. é como em
tudo” – existe um reduzidíssimo número de textos, de indubitável qualidade literária, que, pela sua dimensão trágica, questiona a fragilidade inerente aos limites do humor e, por conseguinte, a sua inclusão nesta obra. Porém, uma vez mais, saliento a natureza subjectiva e o carácter relativo daquilo que se pode considerar de
pendor humorístico.
Resta dizer que, mediante a proliferação do humor em registo escrito que testemunhamos quotidianamente, a próxima recolha não deverá, nem poderá aguardar tanto tem o a ser realizada como as
anteriores, pois urge apresentar e trabalhar o humor nacional com a elevada qualidade com que esta antologia se anuncia ao público português.
Exemplar muito estimado, capa e miolo limpos
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